A história
não é nova. Muito menos a estratégia. O Brasil
participa da Estação Espacial Internacional (ISS)
desde 1997. Nunca conseguiu tirar do papel o seu compromisso com
os outros 15 países participantes e construir partes da
espaçonave-laboratório. Isto é, até
hoje demonstramos toda a nossa “ginga” em adiar a
construção e entrega desses componentes, mas nunca
fizemos um “gol”. Nunca fabricamos nas indústrias
nacionais sequer um “parafuso espacial” com a marca
“made in Brazil” para essa cooperação.
Segundo o contrato inicial, iríamos construir seis peças
relativamente “grandes”. A Agência Espacial
Brasileira (AEB), responsável legal por todas as decisões
brasileiras na cooperação, desistiu desse desafio
em 2002. Situação extremamente desagradável
junto aos outros parceiros. Aquilo marcou o início de minha
“carreira diplomática técnica”. Com
muita argumentação, conseguimos justificar junto
ao conselho internacional do programa da ISS aquela falha inesperada
do Brasil em cumprir a sua responsabilidade contratual. A solução
veio por meio da “estratégia” de mudar o escopo
de participação do país no projeto. Ao invés
de construir seis peças importantes, ao custo de fabricação
conjunto aproximado de US$120 milhões, a AEB passou a ser
responsável pela fabricação de apenas 33
placas adaptadoras com valor total de US$10 milhões. A
nossa indústria acabava de perder a chance de receber US$
110 milhões, mas o Brasil se manteve na cooperação
e foi poupado do vexame internacional de ser denunciado no acordo.
Foi poupado do vexame de ser expulso do grupo de participantes.
As novas partes de responsabilidade do Brasil eram de construção
muito mais simples e não eram itens críticos em
termos do cronograma geral de montagem do veículo. Isto
é, na verdade os parceiros não confiavam mais na
competência verde-e-amarela para desenvolver, construir,
testar e entregar algum componente essencial da espaçonave.
Entretanto, toda essa redução de tarefas e o desconforto
de uma participação tipo “café com
leite” ainda não foram suficientes para acordar o
gigante adormecido em berço esplêndido. Absolutamente
nada foi feito para a cooperação pelos dois anos
seguintes, isto é, de 2002 até o final de 2004!
Aqui na NASA, no papel de representante da AEB junto ao programa
da ISS, já não tinha como apresentar nas reuniões
nenhuma justificativa possível para tais atrasos. Efetivamente
evitava cruzar com certas pessoas nos corredores dos prédios.
Ao mesmo tempo, entre mudanças de administração
do programa espacial brasileiro, lutava no Brasil para fazer com
que as autoridades percebessem a importância do projeto
e o risco enorme que a incapacidade de produzir algo concreto
na nossa indústria representava para a imagem internacional
de competência técnica do país. Tirei muitas
fotos, escrevi e entreguei muitos “papers” sobre o
assunto, mas praticamente nenhum apoio oficial era dado ao programa.
No final de 2004, já bastante desanimado pela indiferença
encontrada, fiz uma visita à FIESP-SENAI em São
Paulo. Afinal, tinha sido aluno da instituição no
início da minha carreira profissional. Quem sabe não
ajudariam! Como esperado, a situação foi bem diferente
dos casos anteriores. Imediatamente ao saber do problema, assumiram
a responsabilidade de construir os protótipos das partes
nacionais. E de graça aos cofres público! Finalmente
algo literalmente “palpável” começaria
a ser feito: protótipos em alumínio aeronáutico!
Tudo parecia estar caminhando para um final feliz. Contudo, a
lentidão inacreditável dos processos burocráticos
para incluir o SENAI-SP no acordo técnico, somada aos atrasos
operacionais do ônibus espacial resultantes do acidente
do Columbia, acabaram por colocar as nossas 33 partes, inicialmente
sem prazo definido para fabricação, no chamado “caminho
crítico” da montagem da ISS. Isto é, no final
de 2005 passaram a ter uma data limite de entrega para o consórcio
científico de países. Naquele exato momento, estava
em Moscou, treinando para realizar a missão espacial a
serviço do país. Ou seja, não tinha como
estar, ao mesmo tempo, aqui em Houston para fazer também
a minha função de “diplomacia técnica”
e “ajustar” a situação para manter o
país no programa.
Como resultado, duas semanas antes do lançamento fui informado
de que a NASA preparava uma carta para a AEB onde agradecia pelos
esforços dos últimos 8 anos e notificava que as
partes de responsabilidade do Brasil seriam contratadas junto
às indústrias americanas para entrega em tempo hábil.
Em outras palavras, estávamos sendo “dispensados”
da cooperação.
Aquela notícia, vinda diretamente da NASA, caiu como uma
bomba para mim. Depois de oito anos lutando para manter o nome
do Brasil respeitado internacionalmente no programa, depois de
oito anos mantendo, a todo sacrifício, o país na
cooperação, ali estava eu, pronto para realizar
a missão para a qual havia sido designado e treinado exclusivamente,
e prestes a ver meus esforços na parte técnica do
projeto serem destruídos.
Passei os dias finais de preparação para o vôo
com a “cabeça quente”, tentando resolver remotamente
a situação e ganhar algum tempo para o país.
A carta não foi enviada, mas a participação
brasileira foi reduzida de 33 para 15 partes apenas. O restante
foi contratado na indústria americana. A decisão
final de manter ou não o Brasil do programa foi marcada
para o final do mês de maio de 2006.
Cheguei da missão determinado a, mais uma vez, impedir
que o nome do país fosse jogado no lixo com a expulsão
do programa. Os dias de recuperação, preso no hospital
em Moscou, passaram lentos. Seguiram-se dias de agitação,
homenagens e alegria no primeiro regresso ao Brasil. Dentro de
mim, a preocupação com a situação
do programa. Essa mesma preocupação foi multiplicada
quando fui informado de que, com a redução da participação
brasileira na cooperação da ISS, não haveria
nenhum outro vôo espacial em vista nos próximos anos.
Assim sendo, pelo acordo inicial entre AEB e FAB, eu teria que
abandonar a parte técnica do programa da ISS e retornar
à atividade de oficial aviador da FAB em alguma unidade
militar no país. Seria o final da participação
do Brasil na ISS. Seríamos expulsos, ainda naquele mês
de maio, do grupo dos países participantes! Certamente
seria um fato muito comemorado pelos “brasileiros”
que sempre criticaram e tentaram prejudicar esse programa. Seria
péssimo para o restante de 99.9999% da população
do país.
Contudo, conhecedor da história do programa, da situação
crítica urgente existente no momento e ciente da importância
da continuidade de minha participação técnica
junto a NASA em Houston para a manutenção do país
no projeto (e assim manter a credibilidade do país), o
Comando da Aeronáutica decidiu pela solução
mais eficaz e lógica e me transferiu para a reserva. Estaria
liberado para ser a ponte entre o setor privado (responsável
pela construção efetiva das partes) e a NASA. Dessa
forma, de maneira eficiente pelo posicionamento “estratégico”,
eles poderiam não só manter, mas também ampliar
minha participação no Programa Espacial e de Defesa
Nacional.
Manobra de combate. Necessária, rápida, vital. Opiniões
tendenciosas, ignorantes da situação real e maldosas
surgiram imediatamente. Respondemos com ação positiva.
Continuamos a luta pelo programa ao mesmo tempo em que nos defendíamos
do “fogo amigo”. Impressionante!
Acima de tudo, o importante era manter os objetivos do projeto.
O restante o tempo iria demonstrar.
Hoje, estou muito feliz. Hoje já começam a aparecer
os primeiros frutos bons dessa atitude e decisão da Força
Aérea.
Nesses últimos meses, tenho trabalhado intensamente junto
à NASA, aqui em Houston, para resolver o problema da permanência
do Brasil no programa. Os resultados positivos já são
reais, e estamos prestes a resolver de vez o problema.
Em maio, mesmo perdendo tempo precioso escrevendo correções
para o público que foi “atacado e desrespeitado”
pelas informações absurdas circuladas na imprensa
por pessoas irresponsáveis a respeito da decisão
da FAB pela minha transferência para a reserva, conseguimos
evitar a decisão de expulsão do país do programa,
adiando conversações para junho e julho.
Pela urgência da entrega das partes nacionais, o risco de
serem contratadas às indústrias americanas ainda
existe. Contudo, na semana passada, a NASA mostrou-se disposta
a modificar, novamente, alguns dos componentes da participação
brasileira, de forma a facilitar a construção nacional
e reduzir a urgência de entrega. Esta semana estarei discutindo
essa possibilidade com a agência americana. Ela deverá,
então, enviar brevemente uma proposta de alteração
técnica para a AEB. Isso garantirá a nossa permanência,
eliminando o risco de “dispensa” do programa internacional.
O SENAI-SP continuará a ser o responsável pela construção
dos novos protótipos. Basicamente são estruturas
semelhantes às placas adaptadoras anteriormente contratadas,
porém mais leves e simplificadas, para serem utilizadas
em veículos de transporte menores que o ônibus espacial
que estarão assumindo sua função em futuro
próximo.
Nesse momento, enquanto aguardamos ansiosos o pouso seguro dos
meus amigos no Discovery, ainda temos muito trabalho para o sucesso
do Brasil no projeto. A situação do programa ainda
precisa de minha atenção contínua. Isso basicamente
me impede de ir ao Brasil durante este mês. A saudade é
grande, mas o trabalho árduo compensa e mostra resultados.
Em breve a participação nacional sairá dessa
nuvem de tempestade e voaremos céus azuis! Se podemos acreditar,
podemos construir!
** Estação
Espacial Internacional (ISS) - único laboratório
espacial, construído por um consórcio de 16 países
(Rússia, Japão, Canadá, França, Alemanha,
Itália, Suíça, Inglaterra, Suécia,
Dinamarca, Bélgica, Noruega, Holanda, Espanha, Brasil e
os Estados Unidos), tem um comprimento total de 108 metros, seu
volume interno equivale a 2 aviões “Jumbos”
e sua massa total é de 400 toneladas, a espaçonave
dá uma volta na Terra a cada 90 minutos (28.000 km/h),
permanecendo numa altitude média de 400 km.
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