Sábado,
três da tarde, sol quente. Como de costume, a turma
toda estava reunida no bar do Joaquim depois da pelada.
Toldo colorido, churrasqueira na rua, mesas amarelas da Skol
e cadeiras de plástico branco espalhadas até
a calçada. O Joaquim, suado e vestindo um avental que
um dia foi branco, cortava os assados nas bandejas dos garçons
que corriam equilibrando copos, garrafas e pratos por aquele
emaranhado de pessoas, cadeiras e mesas.
O boteco era na esquina da Ladeira Principal. A rua tinha
calçamento bem feito e muitas casas antigas conjugadas.
Ali, um cochicho bastava para se começar um boato.
As paredes tinham ouvidos! Nas janelas azuis de madeira grossa,
se debruçavam as mocinhas recatadas, sorrindo discretamente
para os rapazes que passavam assanhados. O som era provido
pela pick up, cheia de alto-falantes, do Julião: “Se
ela não me trair novamente, eu caso”, da famosa
dupla sertaneja Capivara e Roncador. Dava para ouvir a música
da entrada da cidade, lá no final da Ladeira!
No meio da algazarra, da falação, da batucada
e da cantoria, entra o Mané, de bermuda, chinelos,
camiseta sem mangas, balançando a barriguinha tradicional
e gritando, ainda esbaforido da subida da ladeira:
“Zezão! Você não sabe da maior!”
“O que foi Mané? Andou vendo disco voador novamente?”,
respondeu o Tonhão, o gozador da turma.
“Que nada!”, falou o Mané, puxando a cadeira
e enchendo, trêmulo, um copo de cerveja.
“O Jacaré me contou que a mulher do Miguel anda
saindo com o Zeca!”
“Para com isso Mané! Que coisa feia falar mal
das pessoas por aí, fofocando pelas costas!”,
recriminou o João, irmão mais novo do Zezão.
“Não! Espera! Tem mais...Ela fez exames e está
com...(tum tum, o som do Julião aumentou)...mês!”,
completou o Mané, já no último gole de
cerveja.
Aquela frase criou uma ilha de silêncio no mar de balbúrdia
do bar.
“Alguém pediu um churrasquinho por aqui?”,
perguntou o garçom que ia passando.
“Cala a boca, ô Comandante Capitão Camarada,
estamos discutindo a doença do Zeca.”, falou
o Carlão preocupado.
“Que doença?”, perguntou o garçom,
que era primo do Zeca.
“AIDS! Ele só tem um mês de vida! E andou
saindo com ....(o som aumentou de novo)... Miguel”
O garçom engoliu em seco. Pensamentos confusos. Saudade
do Zeca. Coitado! Deixou o prato de churrasco na mesa, tropeçou
na cadeira do lado, quase caiu. Correu para a mesa 2, onde
estava o Irineu, irmão do Zeca. Chegou pálido
como se tivesse visto o disco voador do Mané.
“Irineu! E o Zeca? Ah coitado! Ele e o Miguel vão
morrer!”
“Quê isso Capitão, ficou maluco?! Que besteira
é essa?”, falou o Irineu indignado.
“Eles estão dormindo juntos! E estão com
AIDS! Vão morrer este mês!”.
Chocado, Irineu não conteve as lágrimas. Debruçou
sobre a mesa e chorou. Choro de bêbado em bar, ninguém
prestou atenção. Contudo, Júlia, irmã
do Jacaré, que ouviu tudo na mesa ao lado do Irineu,
saiu em pânico. Chegou à mesa 4, puxou o Tião
pelo braço e falou baixinho:
“Tião! Ai meu Deus! Tô com AIDS! Vou morrer
em duas semanas! O Zeca, o Miguel e as mulheres deles também.
Já estão com um pé na cova!”
O Tião quase caiu da cadeira.
“Quê? A mulher do Zeca?”
Levantou com a mão na cabeça, zonzo da cerveja
e da notícia. Procurou pela Marta, que era uma morena
de parar o trânsito. Ela coordenava as “mocinhas”
da cidade e todos os sábados estava por ali, só
nas “relações públicas”,
com os potenciais clientes. Lá estava ela, na mesa
10, em vestido vermelho curtinho, pernas cruzadas, jogando
o cabelo para o lado, sorrindo e segurando, com charme e dedinho,
um copo plástico de cerveja.
“Marta, vem cá! Metade da cidade está
com AIDS! Eu não duro mais do que uma semana! Todos
estão fazendo exames. Desculpe, mas...”
E lá se foi o Tião, chorando, cambaleando ladeira
abaixo, crente que aquela seria sua última bebedeira.
A Marta, espalhafatosa, um escândalo de mulher, subiu
na pick up do Julião, desligou o som, chamou a atenção
de todos, e gritou:
“Pessoal! AIDS não mata assim tão rápido.
Não fiquem desesperados, ainda. Vamos nos unir para
vencer essa doença que assola toda a população
desta cidade...”
Antes que conseguisse terminar, Marta caiu, desmaiou de emoção.
O bar virou um alvoroço de vozes, substituindo o som
do Julião por conversas desesperadas e cochichos pelo
canto da boca. Quem ficou com quem, quando, onde, como? Confusão!
Pessoas gritavam por outras pessoas, barulho de mesas caindo,
cadeiras afastadas, choro e lamentos. Ninguém socorreu
a Marta. Cada um foi para o seu lado, em desespero. O bar
esvaziou em 2 minutos. Mesas, garrafas, copos, pratos, assados
e cadeiras, tudo espalhado. Ninguém pagou as contas.
O Mané chegou em casa assustado. Entrou correndo procurando
a Soninha. Ela não estava em casa. Voltou para a sala.
Notou um papel sob a porta. Era um bilhete do consultório
do Dr. Gerôncio:
“Cara Soninha, resultado positivo. Fale comigo urgente.”
Ao ler aquilo, despencou no sofá. “A Soninha
também! EU TAMBÉM!!!”
Esticou o braço até a gaveta do balcão.
Pegou o 38 comprado para emergências. Encostou no ouvido
e disparou.
O Mané morreu. A Marta também morreu ao bater
com a cabeça na quina da pick up. O médico ficou
rico. O Joaquim faliu. A Soninha teve um lindo menino, o José
Carlos, uma discreta homenagem ao pai da criança. E
as mocinhas recatadas continuaram debruçadas nas janelas.
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