BOATOS

Marcos Pontes
07/01/2009

Sábado, três da tarde, sol quente. Como de costume, a turma toda estava reunida no bar do Joaquim depois da pelada.
Toldo colorido, churrasqueira na rua, mesas amarelas da Skol e cadeiras de plástico branco espalhadas até a calçada. O Joaquim, suado e vestindo um avental que um dia foi branco, cortava os assados nas bandejas dos garçons que corriam equilibrando copos, garrafas e pratos por aquele emaranhado de pessoas, cadeiras e mesas.
O boteco era na esquina da Ladeira Principal. A rua tinha calçamento bem feito e muitas casas antigas conjugadas. Ali, um cochicho bastava para se começar um boato. As paredes tinham ouvidos! Nas janelas azuis de madeira grossa, se debruçavam as mocinhas recatadas, sorrindo discretamente para os rapazes que passavam assanhados. O som era provido pela pick up, cheia de alto-falantes, do Julião: “Se ela não me trair novamente, eu caso”, da famosa dupla sertaneja Capivara e Roncador. Dava para ouvir a música da entrada da cidade, lá no final da Ladeira!
No meio da algazarra, da falação, da batucada e da cantoria, entra o Mané, de bermuda, chinelos, camiseta sem mangas, balançando a barriguinha tradicional e gritando, ainda esbaforido da subida da ladeira:
“Zezão! Você não sabe da maior!”
“O que foi Mané? Andou vendo disco voador novamente?”, respondeu o Tonhão, o gozador da turma.
“Que nada!”, falou o Mané, puxando a cadeira e enchendo, trêmulo, um copo de cerveja.
“O Jacaré me contou que a mulher do Miguel anda saindo com o Zeca!”
“Para com isso Mané! Que coisa feia falar mal das pessoas por aí, fofocando pelas costas!”, recriminou o João, irmão mais novo do Zezão.
“Não! Espera! Tem mais...Ela fez exames e está com...(tum tum, o som do Julião aumentou)...mês!”, completou o Mané, já no último gole de cerveja.
Aquela frase criou uma ilha de silêncio no mar de balbúrdia do bar.
“Alguém pediu um churrasquinho por aqui?”, perguntou o garçom que ia passando.
“Cala a boca, ô Comandante Capitão Camarada, estamos discutindo a doença do Zeca.”, falou o Carlão preocupado.
“Que doença?”, perguntou o garçom, que era primo do Zeca.
“AIDS! Ele só tem um mês de vida! E andou saindo com ....(o som aumentou de novo)... Miguel”
O garçom engoliu em seco. Pensamentos confusos. Saudade do Zeca. Coitado! Deixou o prato de churrasco na mesa, tropeçou na cadeira do lado, quase caiu. Correu para a mesa 2, onde estava o Irineu, irmão do Zeca. Chegou pálido como se tivesse visto o disco voador do Mané.
“Irineu! E o Zeca? Ah coitado! Ele e o Miguel vão morrer!”
“Quê isso Capitão, ficou maluco?! Que besteira é essa?”, falou o Irineu indignado.
“Eles estão dormindo juntos! E estão com AIDS! Vão morrer este mês!”.
Chocado, Irineu não conteve as lágrimas. Debruçou sobre a mesa e chorou. Choro de bêbado em bar, ninguém prestou atenção. Contudo, Júlia, irmã do Jacaré, que ouviu tudo na mesa ao lado do Irineu, saiu em pânico. Chegou à mesa 4, puxou o Tião pelo braço e falou baixinho:
“Tião! Ai meu Deus! Tô com AIDS! Vou morrer em duas semanas! O Zeca, o Miguel e as mulheres deles também. Já estão com um pé na cova!”
O Tião quase caiu da cadeira.
“Quê? A mulher do Zeca?”
Levantou com a mão na cabeça, zonzo da cerveja e da notícia. Procurou pela Marta, que era uma morena de parar o trânsito. Ela coordenava as “mocinhas” da cidade e todos os sábados estava por ali, só nas “relações públicas”, com os potenciais clientes. Lá estava ela, na mesa 10, em vestido vermelho curtinho, pernas cruzadas, jogando o cabelo para o lado, sorrindo e segurando, com charme e dedinho, um copo plástico de cerveja.
“Marta, vem cá! Metade da cidade está com AIDS! Eu não duro mais do que uma semana! Todos estão fazendo exames. Desculpe, mas...”
E lá se foi o Tião, chorando, cambaleando ladeira abaixo, crente que aquela seria sua última bebedeira. A Marta, espalhafatosa, um escândalo de mulher, subiu na pick up do Julião, desligou o som, chamou a atenção de todos, e gritou:
“Pessoal! AIDS não mata assim tão rápido. Não fiquem desesperados, ainda. Vamos nos unir para vencer essa doença que assola toda a população desta cidade...”
Antes que conseguisse terminar, Marta caiu, desmaiou de emoção. O bar virou um alvoroço de vozes, substituindo o som do Julião por conversas desesperadas e cochichos pelo canto da boca. Quem ficou com quem, quando, onde, como? Confusão! Pessoas gritavam por outras pessoas, barulho de mesas caindo, cadeiras afastadas, choro e lamentos. Ninguém socorreu a Marta. Cada um foi para o seu lado, em desespero. O bar esvaziou em 2 minutos. Mesas, garrafas, copos, pratos, assados e cadeiras, tudo espalhado. Ninguém pagou as contas.
O Mané chegou em casa assustado. Entrou correndo procurando a Soninha. Ela não estava em casa. Voltou para a sala. Notou um papel sob a porta. Era um bilhete do consultório do Dr. Gerôncio:
“Cara Soninha, resultado positivo. Fale comigo urgente.”
Ao ler aquilo, despencou no sofá. “A Soninha também! EU TAMBÉM!!!”
Esticou o braço até a gaveta do balcão. Pegou o 38 comprado para emergências. Encostou no ouvido e disparou.
O Mané morreu. A Marta também morreu ao bater com a cabeça na quina da pick up. O médico ficou rico. O Joaquim faliu. A Soninha teve um lindo menino, o José Carlos, uma discreta homenagem ao pai da criança. E as mocinhas recatadas continuaram debruçadas nas janelas.

Marcos Pontes
Colunista, conferencista, pesquisador, professor e primeiro astronauta profissional lusófono a orbitar o planeta, de família humilde, começou como eletricista aprendiz da RFFSA aos 14 anos, em Bauru (SP), para se tornar oficial aviador da Força Aérea Brasileira (FAB), piloto de caça, instrutor, líder de esquadrilha, engenheiro aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), piloto de testes de aeronaves do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), mestre em Engenharia de Sistemas graduado pela Naval Postgraduate School (NPS USNAVY, Monterey - CA).
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